sábado, 2 de janeiro de 2010

CONFLITO NO SURINAME - BRASILEIROS E QUILOMBOLAS (MELHOR OLHAR DE NOVO)

Como todo brasileiro fiquei apreensivo em ver a noticia de que, no Suriname, promovera-se um ataque contra brasileiros. Gente com facão na mão, assassinatos, estupros e incêndios contra nós, os simpáticos e alegres brasileiros... Não faz sentido.
Depois do primeiro impacto, lembrei que, como todo brasileiro, tenho uma percepção exagerada de nossa simpatia e capacidade de ser amado. Nós brasileiros não somos tão “boa praça” assim (em alguns casos somos é folgados).
Fui aos telejornais e constatei que (como quase todo brasileiro) eu não fazia a menor idéia de que raios se tratava o Suriname. Mas foi na frente da TV que ouvi repetidas vezes a frase: “Brasileiros atacados por quilombolas.”
Sim, quilombolas. O que aqui no Brasil constitui os inofensivos e quase extintos remanescentes de quilombos, no Suriname apareceu como uma facção raivosa e descontrolada com sede de sangue.
Neste momento minha orelha levantou: peraí, a história tá começando a ficar mal contada!
Corri para a revista Veja, cuja assinatura ganhei de uma leitora - valeu Mihokko! ;) - e que em matéria de história mau contada é imbatível.
Dito e feito, eu sabia que a boa e velha Veja não me decepcionaria. Com uma reportagem da turma do fundão de Leonardo Coutinho, recebi a mais genuína falta de informação preconceituosa. Na reportagem tem-se a impressão de que o Suriname é uma floresta habitada por um grupo de negros guerrilheiros que espalham o terror no país, juntamente com javaneses, indianos e a máfia Rússia e chinesa. Palavras chaves: Terror no Suriname, Encrenqueiro, Descendentes de Escravos Africanos, Comportamento Tribal e besteiras, besteiras e mais besteiras...
A reportagem resumiu todo o conflito a uma briga de bar, na qual o malvado, arruaceiro e drogado quilombola Wilson Apensa, agrediu o inofensivo gente boa brasileiro Adilson Oliveira que, armado de faca, cravou-a no coração de Wilson bandido e depois fugiu.
Daí a gangue de Wilson se vingou barbaramente dos brasileiros inocentes (segundo a reportagem, garimpeiros e prostitutas).
Falemos a verdade, muito simplório acreditar que não havia nenhuma tensão anterior entre os brasileiros e este grupo.
Lembremos que a atividade daquele garimpo é ilegal e se dá, adivinha, em terras quilombolas.
Não farei aqui nenhuma defesa à violência e selvageria empregada contra qualquer grupo, mas, quero entender e ajudar a entender melhor o fato.
Passado o primeiro impacto fui ao material disponível para tentar entender minimamente o país, sua formação e consequentemente o conflito.
De cara encontrei uma reportagem de 2004 que denuncia o risco de desaparecimento dos quilombos do suriname , graças a exploração ilegal de madeira e minérios em suas terras. A denuncia foi feita pelo antropólogo norte-americano Richard Price, que convive há 40 anos com as comunidades do Suriname e da Guiana Francesa, adivinha onde, no Fórum Cultural Mundial em São Paulo : 0.
Então concluo que a situação desses garimpos não é o que se pode chamar de pacífica, assim como não é a relação de índios e grileiros aqui no Brasil.
Interessante que o Suriname é o único país da América Latina (e acho que do mundo) que não reconheceu o direito a terra das comunidades indígenas e quilombolas, o que é um atraso nas relações humanas e democráticas.
E para quem acha que essas comunidades são “tribos selvagens” que vivem como há 200 anos atrás (o que é bem civilizado do ponto de vista ecológico) os povos Quilombolas do Suriname preservaram a essência de sua cultura africana e desenvolveram uma escrita própria, o que nem é preciso comentar o valor do ponto de vista antropológico e a importância do ponto de vista de resistência cultural. (ver AS NAÇÕES MAROONS DO SURINAME ).
O Suriname é uma ex colônia holandesa (século XVII) , que, a exemplo de nós brasileiros, teve sua sociedade fundada na pior maneira de organização política: a escravista Colônia de Plantação - aquela em que se usa mão de obra escrava para explorar um território sem ter nenhuma preocupação com o lugar, nenhum respeito pela humanidade do escravizado e nenhuma intenção de morar na colônia explorada.
Foi abandonada a própria sorte (a tal independência) em 1975, já que não era economicamente viável para os países baixos e dava mais prejuízo tela como colônia do que como país.
Mais ou menos como a chácara que a família tem mas nunca visita, não paga os impostos e nem os encargos e tenta desesperadamente vender a bucha (neste caso a Holanda quis e vendeu pro próprio caseiro sem pagar os encargos trabalhistas).
Numa terra fronteiriça (digo no sentido de tensões humanas) onde convivem Europeus, Negros (Crioulos), Quilombolas, Ameríndios, Javaneses, Indianos e Mulatos (que não se identificam com os quilombolas) pode-se imaginar uma situação parecida com a do Brasil no sentido de sentimento de país.
Porém isso não ocorre. O Suriname ainda sofre pela falta de sentimento de comunidade. Para se entender é possível se ter uma sociedade (pessoas organizadas no mesmo território e sob um mesmo governo) sem que se tenha uma comunidade (pessoas que guardam pontos comuns como lugar, idioma, cultura e religião).
No caso do Suriname, os grupos citados apenas moram no mesmo lugar, mas, de modo geral, não falam a mesma língua, não professam a mesma fé, e não compartilham de uma mesma cultura ou sentimento patriota.
Neste cenário, de maneira até certo ponto previsível, veio um Golpe de Estado em 1980 por militares de baixa patente liderados por Dési Bouterse , dando a desculpa necessária para a Holanda se retirar de vez e abrindo caminho para o apoio cubano, e, dando inicio a uma forte resistência civil (dos vários grupos citados).
O processo democrático só foi retomado em 1983 quando houve o rompimento do governo militar e com o apoio do Brasil e Venezuela à aproximação deste país com os demais Sul–Americanos.
Ainda pensando em nossa história, tivemos o comemorado Quilombo de Palmares que resistiu mas caiu no final. O Suriname teve pelo menos 06 (seis) quilombos que não só sobreviveram como obtiveram com a luta o direito de liberdade por meio de tratados reconhecidos e válidos. (como aquele que prometeram a Ganga Zumba e não cumpriram)
O medo de revoltas sangrentas contra a escravidão era uma realidade bem mais presente para os colonizadores do Suriname, entre eles alemães, holandeses e, quem diria, judeus, aquele povo tão injustiçado pelo holocausto mas que foi protagonista dos mais cruéis e inacreditáveis relatos de maus tratos contra os escravos africanos no Suriname (até tu Brutus... eu não esperava...)
Também os Mulatos se constituíram como segmento autônomo naquela sociedade. Diferente do Brasil (país dos pardos) os mulatos formaram um grupo com ideologia, história e nomes que lhes dão autonomia reconhecida por eles e pelos demais grupos.
Interessante observar que, segundo os textos lidos, se no Brasil há uma identificação aberta e crescente entre negros e pardos, no Suriname, os mulatos vezes se aproximam de negros urbanos, vezes dos Europeus e sentem-se essencialmente distantes dos Negros do Mato ou Quilombolas, chegando mesmo a convivência difícil e contenciosa.
Há realmente uma fraca percepção de governo no país, o que provavelmente dificulta-se pela citada ausência de sentimento de comunidade ou, indo além, de povo.
A impressão é que grupos como judeus, quilombolas, javaneses e indianos ainda se fecham em guetos sem desenvolver um patriotismo mínimo que leve a uma identidade nacional para um progresso possível.
Verdade que seria necessário ver com os próprios olhos a sociedade surinamês para entendê-la de forma aberta e sem estereótipos, mas, num breve estudo, dá pra ter certeza que o Suriname não é só selva, e que o episódio com os brasileiros não foi mera briga de bar.
Para agravar a situação há os estrangeiros que, em busca de riqueza instantânea, atuam no país com a mesma mentalidade do primeiro colonizador holandês - explorar ao máximo sem nada dar em troca. Neste grupo de predadores estão os chineses, os russos, os traficantes de sei lá onde e nós... os brasileiros gente boa.

5 comentários:

  1. Que bom que voltou a ativa! Amei o artigo, pode ter certeza de que a informação será util, afinal julgar o livro pela capa não dá, né? Beijos e obrigada mais uma vez pela contribuição. Joyce e Sadraq

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  2. Oi amigo,como fiz um alerta do google para "conflito no Suriname",acabei chegando ao seu blog.Estou aqui em Paramaribo a trabalho.Jornalistico,diga-se de passagem.Seu post parece completo e realmente está bem embasado historicamente.Mas,o que pude observar quando estive na região,relato a seguir.
    O tal conflito só tomou esse tom exagerado,graças ao padre que se encontrava inicialmente na localidade.Ele exagerou,e muito.Parte das coisas que ele citou nunca foi encontrada.Apesar de ter sim,como é natural um elemento xenófobo,não foi bem isso que motivou o ataque.Lá na região de Albina,a presença do Estado é nula e imperam a maconha e a cerveja a céu aberto,de dia e pasmem,em frente a única delegacia de Polícia do local.A cidade tem casas,ou seja,nada de quilombolas estilo Brasil,morando em choupanas no mato.É apenas uma cidadezinha pobre como tantas das nossas.O garimpo não acontece nessa região e sim do outro lado do rio,já na Guiana Francesa.Lá ninguém é santo,e os brasileiros que atuam lá tem a marca clássica encontrada em garimpos,a da ilegalidade e irregularidade.Todos no país falam um dialeto próprio e não rola essa de quilombolas que preservam sua cultura.O que ví na região de Albina foram jovens visivelmente chapados de maconha e cerveja,durante o dia,desajustados por seus problemas,pobreza,etc e loucos por uma confusão.Aliás,por falar em preservaçao de cultura,eles todos,os jovens,se vestem como Bob Marley,com dreads na cabeça,camisas alusivas á Jamaica e demais clichês.Ou seja,creio realmente que foi uma briga de bar que motivou aquele bando de fascinoras ao ataque.Com isso eles roubaram ouro,tocaram o terror e estupraram algumas mulheres,tudo por diversão.A coisa da bagunça é tão escrachada que presenciei uma cena inimaginável em nosso país.Um policial foi retirar um dos rapazes,que havia estacionado em local irregular e juntaram uns seis caras,todos de olhos vermelhos e chapados e começaram a zombar do policial,tiravam onda com sua cara.Aquilo que você por ventura viu em tvs brasileiras,dos caras dizendo que querem matar brasileiros,me refiro aos jovens falando diante das câmeras,é nada mais nada menos que vontade de aparecer.Muitas vezes,diante de nossas câmeras rola muito exagero,fala-se apenas para aparecer na TV.Enfim,é mais ou menos isso.

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  3. olá Ed. Obrigado pela valiosa contribuição. Como eu disse, só estando no local para entender melhor. Algumas perguntas: pelo que entendi não são quilombolas (no sentido que conhecemos aqui) os autores dos ataques, mas sim jovens desajustados moradores da região, é isso? Eles pertencem a etnia maroons citada? São os mesmos da foto que postei? Estas respostas serão muito bem vindas.
    Abçs e bom trabalho.
    Helton

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  4. Ola Dr. Helton Fesan.
    Primeiramente parabenizo-o pela excelente materia, aproveito a aportunidade para te desejar um feliz ano novo, repleto de realizações e sucesso.
    Acho importantíssimo iniciativas como a sua de querer entender melhor o que se passa com o nosso povo, em especial, os nossos irmãos africanos ou descendentes como somos, seja aqui (Brasil) ou em qualquer lugar do mundo. E mais do que entender é compartlhar essas informações. Mais uma vez parabéns e sucesso.

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  5. Ontem, 03/01, mais uma vez assisti a reportagem sobre o Conflito no Suriname e daí formei minha opinião, que é semelhante a sua. Conclusão: Ouvir, analisar inclusive os precedentes e depois opinar.
    Sabedoria é a palavra chave de 2010.
    beijos,
    Vânia.

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