quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

ENCHENTES NO ABC - QUANDO A ÁGUA BATE NA BUNDA...


Por volta das quatro, enquanto digito qualquer coisa, me incomodo com o vento misturando no chão os documentos que deveriam estar na mesa.
Olho pela janela e encontro a Av. Perimetral barulhenta e movimentada como veia aorta de Santo André.
Uma escuridão no horizonte, um barulho de sirene, uma, duas ambulâncias seguem sentido paço municipal.
Imagino algo ruim e penso que vou descobrir mais tarde no noticiário.
Volto ao computador. Ouço um helicóptero e imagino assalto à banco na Senador Flaquer. Guardo a curiosidade para o noticiário das oito.
Começa a chover, corro para fechar a janela enquanto praguejo alguma coisa sobre molhar papéis na mesa e pergunto para a sócia se a goteira da sala ao lado foi consertada.
Ligo para a esposa. O bebê ta na escolinha e só dá pra buscar depois da chuva.
As luzes apagam e acendem várias vezes. Melhor desligar o computador.
Tudo apagado. Finjo preocupação com as vítimas das enchentes no Rio e em áreas pobres de São Paulo...
“Aqui não enche”.

Vou enfrentar a chuva e descer a Pereira Barreto sentido Parque Oratório.
Tudo trancado, fico ensopado ao abrir o carro. Entro e tudo bem, é só água...
A Álvares de Azevedo está um caos. A rua Monte Casseros é um rio. “Mas como? Aqui é alto...”
Insisto e vou sentido Av. Portugal. Descendo ao encontro da Campos Salles, descubro que minha cidade já não existe como antes. Não há asfalto nem lojas... Apenas o Tamanduateí engolindo a Av. dos Estados e visitando o centro.
A estação de trem, o terminal rodoviário, a velha Av. Industrial que hoje abriga shoppings estão à mercê da lama.
Meu carro perde o controle de si e desfalece. Também eu já não o controlo. Estamos à deriva. Busco a janela e por ela escalo o teto. Ainda lamento o prejuízo, a perda do símbolo classe média de quatro rodas.

Já não finjo preocupação com as vítimas de outras enchentes, já não dá pra deixar para o noticiário das oito. Eu sou o noticiário das oito...
Finalmente não há mais carro nem teto. A água bate na bunda.
Vou andar. Tatear com os pés o chão que conheço a mais de vinte anos. Não são os mesmos, a água me abraça e um bueiro me chama.
Minha terra, minha água.

A cidade se afoga com meu corpo entalado na garganta.

Helton Fesan